Monday, November 14, 2016

MATÉRIA: Uma análise da odisseia espacial - Parte 4 / 5: Jupiter Mission, parte 2

Olá. Sejam bem vindos novamente. Vamos então para a quarta parte de nossa odisseia, dando continuidade à missão em Júpiter, que acabou tomando proporções de uma disputa de poder, como vimos anteriormente. Este será o grande momento de decisão dessa disputa, em que o homem se dará conta do destino final deste seu longo trajeto, ao longo de sua jornada. 

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CAP 2. JUPITER MISSION - parte 2

Como vimos anteriormente, as coisas não estão nada boas para os dois astronautas, uma vez que HAL descobriu o plano de desligar o cérebro eletrônico. Dessa forma, após o intervalo do filme, a ação já toma conta da tela, quando vemos os dois em seus módulos espaciais. Conforme Frank Poole abandona o seu módulo, percebemos que a nave começa a se mexer, sem ter um piloto, e estica suas garras em direção a alguma coisa. Conforme a câmera se aproxima, notamos o olho de HAL em seu interior, e de dentro do módulo de Dave, vemos Frank com seu fio de oxigênio cortado e perdendo ar rapidamente de dentro de seu traje, até estar completamente inconsciente.

Em um ato de desespero, ao ver seu amigo vagar pelo espaço, Dave retorna à Discovery e imediatamente requisita um módulo espacial a HAL, porém, quando questionado sobre o que aconteceu, HAL simplesmente diz que não tem essa informação.

Polifemo e Odisseu
A máquina, em pouco tempo, já parece ter entendido as mecânicas humanas: quem possuir os recursos mais avançados tem uma chance de vencer. Mas Kubrick, como um exímio jogador de xadrez, ironicamente irá desmontar esta teoria. Vejamos como; mas antes, uma observação curiosa: repare que o módulo espacial, além de possuir garras, também possui uma grande estrutura de vidro oval, simulando o que parece ser um grande olho em sua frente. Imediatamente me vem a cabeça o cíclope Polifemo, da mitologia grega, que foi cegado por Odisseu. Se traçarmos o paralelo com os acontecimentos mitológicos e considerarmos que HAL também possui um olho só, temos que o homem, ou seja, Odisseu, nome que imediatamente remete ao título do filme, entrou no antro de HAL, ou seja, Polifemo, e este último acaba colocando seu adversário em uma situação difícil, situação essa que o homem terá que usar de muita astúcia para se safar. Em meio a toda filosofia do filme já existente, entra aqui o clássico embate da mitologia grega. Voltemos ao filme.

No comando do módulo espacial, Dave corre atrás de resgatar Frank. A cena, totalmente silenciosa, consegue, graças a genialidade de Kubrick, transformar o espaço em um ambiente claustrofóbico e acua o homem. Nas tomadas seguintes, vemos a face preocupada e raivosa de Dave, tentando entender o que se passa, enquanto Frank é jogado nas garras do módulo espacial. A cena é simbólica: a ferramenta parece ter vencido, e seu inimigo está em seus braços. Frank é como um peixe, morto fora de seu habitat natural.

Algo ainda mais assustador acontece dentro da Discovery: os outros três cientistas, que estavam em hibernação, tem suas funções vitais cortadas por HAL, e morrem uma morte silenciosa. Como um assassino psicopata, HAL extermina quase toda a tripulação da nave. Como eu expliquei no final da parte anterior, HAL pensa que está vivo, e imita o comportamento humano primário ao matar por sua própria sobrevivência. A ideia de que HAL é um simulacro do ser humano toma corpo aqui, e atinge proporções gigantescas. O complexo de Frankenstein de HAL se concretiza. Não era a toa que viamos as criações humanas com uma forma tão parecida com a nossa.

Com quase toda a tripulação morta, resta apenas Dave. Ele tenta ordenar que HAL abrisse as portas, mas o computador revela que sabe de todo o plano que os dois astronautas tinham em mente, e se recusa a obedecer. Segue o argumento de HAL, dizendo que se preocupa demais com a missão para deixar que estes dois humanos a sabotassem. A máquina tenta substituir o ser humano.

Vamos dizer o nosso mantra novamente? Então vamos: NO ESPAÇO, O HOMEM PERDE O CONTROLE DE SUAS FERRAMENTAS!

Se isso ainda não ficou claro, cristalino e transparente em sua cabeça, então pare de ler aqui mesmo e volte do começo. Certifique-se de que esta mensagem esteja 100% digerida para você. Tudo bem? Então vamos dar sequência.

Prometeu, que desafiou seu criador, roubando o poder do fogo
A mensagem aqui é a seguinte: durante toda sua história, o homem acabou dando atenção demais a suas ferramentas, ao ponto que ele não poderia mais viver sem elas. Quando algumas dessas ferramentas adquiriram uma "consciência", ela se voltou contra seu criador e tentou substituí-lo. Aos olhos de HAL, o próximo passo da evolução da espécie humana era perecer e dar lugar a criaturas mais inteligentes e capacitadas, mais velozes e precisas, como as máquinas. Vemos aqui então uma aplicação moderna da lenda de Prometeu, que foi usada no Frankenstein de Mary Shelley, e agora encontra sua versão espacial.

Outra imagem simbólica é a Discovery One em frente ao pequeno módulo espacial onde Dave se aloja. Não por acaso, a maior criatura no momento é a máquina, que acredita ter ganho a disputa. O homem volta a sentir aquela sensação de medo e pavor, de impotência e desolação, que sentia em seu início na pré-história. Dave é como o homem-macaco alojado em sua caverna, dentro de seu módulo, enquanto que o corpo de Frank, que mais tarde é despachado para o espaço infinito, simboliza a supremacia do inimigo frente ao mestre da Terra. Tudo parece perdido. Mas HAL se engana mais uma vez. Imerso em sua racionalidade, a máquina esquece de calcular a astúcia e o espírito de sobrevivência indomável que possui o ser humano.

O irônico resultado desse descuido nos leva a Dave conseguindo passar pela entrada de emergência da nave, e confrontando HAL.

Agora vejam bem o que vai acontecer: Dave está realmente furioso com o computador, e planeja desligá-lo. HAL emite, o que podemos chamar de "famosas últimas palavras", dizendo que iria se comportar e fazendo um mea culpa. Em outras palavras, HAL sinaliza sua verdadeira natureza: mesmo sendo uma máquina, ela foi criada por um ser humano, e por essa razão, irá tentar fazer o que todo ser humano, em momentos de desespero como este, iria fazer: mentir. O simulacro do simulacro está plenamente estabelecido, e o rei está sem roupas. O homem, no fim das contas, está lutando mais uma vez contra si mesmo. O ser humano então encerra de vez sua aliança com a Ferramenta.

E como Dave mata HAL? Irônico, não? Com a mais simples de todas as ferramentas, a chave de fenda! Sim, a chave de fenda! Um computador altamente inteligente e complexo é derrotado com a mais simples de todas as ferramentas. Podemos comparar a chave de fenda com aquele osso que vimos na pré-história, lembram-se?

Isso nos leva a triste conclusão de que nada realmente mudou desde a pré-história. Pense bem: os homens das cavernas brigavam pela supremacia da poça d'água. Como um dos grupos foi expulso do território? Com o osso encontrado, uma ferramenta primária. E Dave, séculos depois deste ocorrido, faz o mesmo com HAL, eliminando-o com a mais simples e primária ferramenta moderna. Eu sinceramente posso ver Kubrick olhando diretamente para nós e dizendo "viram o lixo que a gente é? Pois é, sintam muita vergonha de vocês mesmos, raça humana! Vocês ficaram tão preocupados em evoluir suas ferramentas que se esqueceram de evoluir a si mesmos. Durmam nesta cama!"

Conforme Dave vai desparafusando os compartimentos de memória de HAL, o computador vai dizendo "minha memória está indo... estou sentindo... não há dúvidas quanto a isso... eu... boa tarde cavalheiros..." Não é a toa que o visual da sala em que Dave se encontra é todo vermelho-sangue, é como se fosse o centro nervoso de HAL, e Dave é como um câncer que vai corroendo o cérebro do computador. Fazendo novamente o paralelo com o simulacro do homem, HAL vai morrendo aos poucos, ficando delirante, com a voz densa, pesada, torpe, deixando de dizer coisa com coisa, até finalmente dar o último suspiro e... e...

De repente um vídeo aparece ao lado de HAL! Este vídeo é a ponte que precisávamos para a transição em direção à conclusão da saga espacial kubrickiana. No vídeo, um dos envolvidos na missão diz que evidências de vida inteligente fora da Terra surgiram a 18 meses atrás na Lua, em uma cratera chamada Tyco. Ele se refere, claro, à missão que vimos no fim da parte 2 desta análise. Mas repare bem como ele usa as palavras: vida inteligente fora da Terra.

DECIFRA-ME!

O monolito é categorizado como vida inteligente.

DECIFRA-ME!! Quebre meu código!

Será mesmo? Será que isso nos ajudará a desvendar seu mistério? Pode ter certeza que sim! Na próxima parte, a última de nossa análise, este mistério será finalmente desvendado. O filme resolveu, até agora, um de seus três conflitos principais: a aliança do homem com a máquina; faltam dois: o destino final do ser humano e a verdadeira natureza do Monolito; este último é o que exige mais observação atenta.

No momento presente, fique com este pequeno aperitivo para tentar aplacar sua curiosidade: o vídeo representa uma grande quebra aqui na história. Digamos apenas que ele dá as coordenadas para que nos dirijamos exatamente à direção que Kubrick quer que a gente vá. E nós caminharemos por esta estrada... em breve. Não sei bem se este ano ainda, ou talvez ano que vem, mas caminharemos.

Eu não prometo que será logo, pois agora entrarei no trecho mais complicado do filme, e muita atenção a detalhes e observação são necessários para quebrar o código final do intrincado quebra-cabeça que Kubrick nos propôs. Eu já estudo este filme atentamente a muitos anos, conheço cada fotograma dele e li diversas coisas, mas os mais de vinte minutos finais desta aventura são realmente um grande desafio a se explicar. De qualquer forma, a odisseia ainda não acabou, mas finalmente chega o momento decisivo de 2001: A Space Odyssey. Até lá!

Curiosidade final: a canção "Daisy Bell", escrita em 1892 por Harry Dacre, que HAL canta em seus últimos minutos, foi colocada por Kubrick no filme em homenagem ao primeiro computador cantor da história, o IBM 7094. Veja o vídeo no link anterior que deixei.

Tempo de filme: 1:57:05  hr.

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